Era Quinta-feira e chovia a cântaros. Naquela noite fria, o vento forte cortava a respiração, enquanto os ombros encolhiam-se por reflexo. Pelas grandes portas de vidro, naquele lugar pouco iluminado, daquela nobre zona da cidade, entravam e saiam pessoas de todas as idades, e de quase todas as classes sociais. Eu própria, por ali já havia passado por duas vezes. À pressa, por estar a gelar. Foi assim durante todo o serão. Entra gente, sai gente. Entra gente, sai gente.
Ali, ao frio, estava um homem de meia idade. Tinha a cara inchada e marcada pelo tempo. Os olhos amarelados e a pele de azeitona. Tinha uma expressão sofrida, carente, desacreditada. Algures dentro de si, tinha esperança. Via-se pelo sorriso que poucas vezes esboçava. Era grato e humilde. Vestia um casaco impermeável preto, com carapuço, e segurava um velho guarda-chuva. As mãos, calejadas e sujas, de unhas cortadas e com muita leveza, sustentavam os pedidos de ajuda. Aquelas eram mãos de quem trabalhou no pesado durante uma vida inteira. As frases de apelo não eram ensaiadas, e poucas eram as vezes em que se conseguiam completar, tamanha era a pressa de fuga dos que ali passavam. Não pude deixar de reparar nos detalhes, não pude deixar de sentir comoção, e não pude negar aquele senhor, a oportunidade de pedir. Não pude deixar de vê-lo à minha frente, educado e cordial. Não há muito que se possa fazer numa situação destas. A escolha está entre olhar para o outro, ou olhar para o lado. E sim, muitas foram as vezes, senão quase todas, que aquele senhor passou literalmente ao lado de toda a gente.
Pedi-lhe um isqueiro emprestado e ele insistiu que eu ficasse com aquilo. Sem aceitar, entreguei-lhe o objeto, e também o que eu tinha na carteira. Três euros em moedas. Ou melhor, quase entreguei. O senhor afastou as minhas mãos e disse que preferia que eu lhe comprasse qualquer coisa para comer. Achei curioso, achei diferente e achei bonito. Achei triste. Entrei pelas portas de vidro mais uma vez, e já aquecida e abrigada, exerci aquilo que acredito. Comprei umas poucas coisas, entre leite, massas e arroz. Tinha dor no meu coração, e não pena. A realidade havia me machucado. Entreguei as sacas ao senhor, e novamente à chuva, trocamos dois dedos de conversa. Senti que aquele homem, tão dorído, queria ser escutado, queria ser visto. Falou-me da família, da fome dos dois filhos. Disse que gostavam de achocolatado no leite, e que coisas simples assim, não lhes conseguia oferecer. Naquela noite, ao menos naquela noite, e enquanto durasse aquilo que levava nas sacas, teriam leite aquecido e com sabor a chocolate. Fui embora com o meu marido, a caminhar pela chuva fria, e estávamos os dois destroçados.
Chegamos à casa, e lá estava a nossa bebé feliz. Quentinha, vestida, alimentada, calçada. Nós os dois estávamos alimentados e aquecidos. Impossível era não refletir sobre tudo o que me doía naquele momento. Sobre quem era aquele homem, de onde veio, para aonde vai. Quem eram os seus pais, que oportunidades tiveram, o que lhe deram. Quem era a sua mulher, quem vão ser os seus filhos. O que a vida lhe deu, o que a vida lhe desgraçou. Que destino tem traçado. Se a sua vida já teria sido melhor, se nasceu para sofrer ao frio e à fome. Se já teria sido feliz e pleno. Se já sentira tranquilidade e paz. Se tinha trabalho, se o perdeu. Se está nesta situação por culpa minha, sua, ou do governo. Se há culpas.
As mãos e o olhar daquele homem não me mentiram. A mágoa estava ali, a lhe escorrer pela cara, envelhecida pela tristeza. Não pude deixar de pensar, e penso até hoje. Qual é o futuro da nossa gente?
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Não há palavras!!! A realidade é que o mundo não avançou e as pessoas não têm AINDA o direito ao mesmo ponto de partida. De quem é a culpa? Talvez de todos. Cada vez mais nos isolamos nos nossos castelos com torres de marfim, cada vez mais negamos o Outro, cada vez mais negamo-nos, cada vez mais negamos a dor. Este homem lembrou-me o mendigo que tinha a ferida à mostra, uma personagem de Clarice Lispector. Talvez a arte seja a nossa única metáfora de luta contra aquilo que nos torna indignos. A literatura também tem a função de denunciar e sobretudo de alterar. Assim, use a sua capacidade de escrever para tocar a alma das pessoas. A palavra alarga o mundo e pode se converter em ação. Mais uma vez, parabéns pelo texto tão intenso e capaz de nos trazer o indizível.
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